sexta-feira, 11 de novembro de 2011

TEATRO PORTUGUÊS

EL-REI / EL-MALIK

O frio lambendo as feridas das peles queimava o reflexo em superfície rugosa dos diversos medos de sabores épicos que gritavam o cheiro da necessidade do mártir, fazendo-se audiovisualmente presente no campo de batalha. Ali, o mundo está sempre por recriar-se, seja para aqueles que se sagrarão vencedores, seja para aqueles que já entraram ali derrotados.

Todos são elmos e máscaras, prontos para o maior papel de suas existências no palco da guerra. Quem sabe orar, reza para uma solução Deus-ex-machina, um milagre que, na crueza verossimilhante daquela encenação da vida, não virá. Que é a vida, ou além, já é a própria sobrevida em seu derradeiro e único ato: a cena do julgamento. O pranto de legiões de almas danadas que tentam a primeira salvação - que não virá, para vencidos ou derrotantes.

Os cavalos são o que há de mais humano entre as coxias, pois entrarão em cena todos instintos. No proscênio, os grandes generais são a pantomima da cordial sanguinolência porvir. Instintos e respondem ao perigo e domados seguem adiante, resfolegando, empinando, escoiceando animalidade nas razões da luta. Razões porvir.

São os arqueiros que se colocam no coro de metal e aves zunindo rêmiges nos céus - um céu-cenário para cada lado, nunca o mesmo Céu. Abrem as cortinas para representarem através de canto elegíaco de suas mortes engastadas entre escudos e peitos. Na marcação exata, dão a deixa para entrarem os protagonistas do esquecimento: a infantaria de homens que realmente viveram, souberam sobreviver, se embriagaram, defloraram seus futuros bastardos dos ventres camponeses lançados à terra, saquearam fés, riram e brigaram por coisas mesquinhas e amaram verdadeiramente, carnalmente e, também, marcharam por longos ensaios até os camarins das figurantes amizade e cumplicidade necessárias para o ombraombro das formações de defesa. Máquina que o soldado ao lado era ainda mesmo ator e corpo pulsando virilidade e cobardia ao som dos tímpanos e cornes que mesmo os anjos não ousariam tocar diante das muralhas dos últimos dias. Homens, menos os cavalos, mais humanos e bem tratados. Homens que improvisavam seus textos. Homens menos cavalos, açoitados pela vã glória que nunca terão suas. E, quando se percebe, tudo é rubro, abutre e pilhagem. Cavalos são cavalos e generais são tripas, vísceras, morte.

Dom Sebastião se foi entre os mouros do Islão. Inimigo que nunca estivera ali, exceto no reino lisboeta, até hoje, como num ruído de ondas... Que nunca foram realmente choradas.

Fecham-se as cortinas. Cruz e Crescente eclipsados.

Dois mesmos Messias que não chegará algum, jamais, novamente.

Perdido em alguma África onde Tormenta se confunde com Boa-Esperança, nem leste, nem oeste, nem nunca mais.

(Girrade Cruz, sem data)

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